domingo, abril 08, 2007

quatro

eu estava assim assado, ouvindo a argumentação fiada na epistemologia deontológica da ontologia dos ornitorrincos, vinda de alguém cujas dentaduras triplas cintilavam a cada termo teutônico cultivado a áridos sacrifícios salivares, que cavavam as profundezas de velhos tomos de conhecimento esquecido. lembro claramente da maneira como alguém arrumava as dentaduras triplas depois de uma esdrúxula repleta de consoantes aspiradas glotais, cujo tilintar lembrava, pelo timbre, o compasso ternário batido de um dodecafonismo digno de tornar kitsch até a mais sóbria e formal das execuções. tentei por mais de uma vez, como um maestro acostumado a pizzicatos virtuosos, barrar o intento de alguém, mas a cada tentativa alguém erguia a mão num sinal breve para que eu esperasse somente um instante, enquanto alguém concluía sua explanação até a última gota de ambrosia. foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. a primeira coisa em que pensei foi marta. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. a luz amarelada das lâmpadas de quarenta e cinco velas lhe dava um apelo místico, sombreando o vão de seus peitos em contraste com a camisa de seda preta e as alças do sutiã vermelho. sua boca desenvolvia um movimento independente do resto do rosto e do corpo, magnífica coreografia, marta era duas, marta era vária – tudo ao mesmo tempo. tive um piriri quando marta articulou a liquidez viril de uma meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira. o botequim flutuou no proselitismo das palavras de marta. tentei fazer algo, a situação exigia uma atitude. procurei com todas as forças o signo adequado àquele contexto. meu olho jazia inerte num pacal insolúvel entre os peitos de uma loira e as ancas de uma japonesa, ambas perseguiam a bola oito como a uma paternidade. pior. diante de minha aparente confusão e desespero, alguém julgou estar sendo obscurantista e pouco pedagógico, decidindo, a seguir, recomeçar a palestra fiada na epistemologia deontológica da ontologia dos ornitorrincos. encheu a boca de saliva e depois sugou entre os vãos dos dentes a fim de lubrificar suas dentaduras triplas – como se as frinchas limpas pudessem melhorar sua dicção e, quem sabe, abrir as janelas do meu entendimento. nesse meio tempo – para meu desespero – banguelas e vastas dentaduras tentavam abalroar marta, que sorria e mandava pra dentro daquele corpo inesquecível barris de meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira. seriam os ornitorrincos marsupiais? foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. a primeira coisa em que pensei foi marta. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim.

cinco

súbito, enquanto alguém buscava a etimologia de um termo esdrúxulo de raízes icsas, marta pisoteou como uma manada de elefantes seu raciocínio, esbofeteando uma conclusão cuja argumentação seria surpreendente mesmo para um doutor de dentaduras quádruplas. o queixo de alguém caiu, suas dentaduras brilharam de satisfação ao encontrar um par digno de se ombrear. deixou um olhar vítreo pairando diante de mim e saltou para o banco ao lado de marta. no mesmo instante senti uma dor aguda, a japonesa fugira do pacal e encaçapava meu olho de quebra à bola oito. a ira da dúvida ou a lívida rua? no alarde do impasse se fez tarde. entre uma melhor de três, marta e alguém deitaram o cabelo. quando dei por mim azulei na direção à rua a tempo de ver marta e alguém entrando num táxi. ouvi duas coisas nitidamente: a primeira foi um termo que aglutinava todas as concepções hermenêuticas possíveis a respeito da epistemologia deontológica da ontologia dos ornitorrincos; a segunda foi o endereço que marta dava ao taxista (mais tarde descobri se tratar de um lugar reservado e destinado às mais sutis discussões afeitas às finezas do paladar de marta, lugar onde ela soltava toda a versatilidade de sua língua de cobra). o táxi se afastou. a primeira coisa em que pensei foi marta. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. disparei pra dentro do botequim. sobre o balcão restava o martelo de marta. ainda era visível meia gota amarga de meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira. peguei o copo e arrepiei o tamanco. o português do botequim ainda gritou um pega ladrão carregado. mas eu correria mais que um canguru por aquele troféu. foi minha primeira vitória.

seis

somente no dia seguinte, ao acordar, foi que me lembrei de ter esquecido no botequim a pasta com meus inéditos e minha carteira de identidade. terei me tornado poeta? nunca mais voltei lá. nunca mais recuperei meus inéditos. nunca mais recuperei minha identidade. a vi certa vez na primeira página de um jornal popular. o que me obrigou a raspar o bigode e pintar o cabelo. mudei de nome. foi duro no início, mas depois de um tempo não doeu tanto. fui um idiota em acreditar em marta. mas marta acreditava em mim.

2 Comments:

Blogger She Python said...

mais mais mais... que vem depois?

sexta-feira, abril 13, 2007  
Anonymous Anônimo said...

...Então será que é você?! Mostra-me o que preciso saber, ouves minha voz fria, pois " ... o todo em mim se faz surdina se eu soltar minha voz anuncia"?

segunda-feira, abril 16, 2007  

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