quinta-feira, fevereiro 01, 2007

juízo sintético a priori

não sei ao certo como vim parar na mesa delas, só sei que a loira de cabelo curto tem um cigarro aceso, queimado já pela metade num cinzeiro à sua frente, ela está com barba aberto e absorta lê um poema em voz alta com toda a entonação e dramaticidade de ex-atriz, o que dá às palavras de barba um verniz simbolista que ele sempre procurou evitar em seus poemas, penso com meus botões que tenho alguma razão nas críticas a barba, mas ele diz que eu sou um representante da academia, que não passa de um museu, por conseguinte, eu não passo de um limpador de estátuas com meu espanador “epixtemológicu”.
procuro o garçom para pedir mais um chope, dou uma olhada na outra, morena, que também tem o cabelo curto. reparo que curiosamente as duas têm o mesmo amalgama rebu-preto nos dedos, a morena está absorta na leitura da loira, não sei se necessariamente pelas palavras de barba.
o garçom chega com meu chope, bem a tempo de ouvir o verso final do poema de barba, ao qual a loira dá toda a tensão na penúltima palavra encerrando com um gesto lento, o queixo no peito, os olhos fechados. a morena aplaude:
— lindo, lindo!
o garçom me olha, retribuo o olhar numa pura cumplicidade masculina.
a loira abandona barba, bebe um gole de cerveja – ao contrário de mim ambas bebem cerveja. a morena aproveita o intervalo para ir ao banheiro, vendo-a de costas faço eco às suas palavras. a loira prende um cigarro na ponta dos lábios, o qual me antecipo a acender, ela dá uma longa tragada, prende a fumaça por mais tempo que o usual, depois deixa a fumaça escapar lentamente por seus lábios entreabertos, bate a cinza, aponta com os dois dedos que seguram o cigarro para barba:
— esse cara é foda.
observo seus olhos, sei que esse comentário foi um mero exercício retórico, ela vai continuar, respiro, dou um gole. a loira retoma a frase anterior, começa a construir seu argumento. enquanto isso a morena sai do banheiro, vai na direção de outra mesa, acocora-se de costas para mim, enquanto conversa entre risadinhas e em voz baixa com um cabeludo de jaqueta de couro e cavanhaque, só o cavanhaque. chego à conclusão de que seria muito difícil vencer uma disputa argumentativa contra ela.
— não sei se tu concordas comigo.
a loira chama minha atenção.
— a palavra poética não é necessariamente portadora da idéia no sentido restrito que a doxa dá a ela, a palavra poética vai além, ela parte na direção de um infinito, mas que pode sê-lo somente porque justamente é uma instância de conhecimento infinito, daí a transendência da visão de mundo que se abre, fazer poemas não é como fazer sapatos, entende? há toda uma peculiar ontologia.
limito-me a balançar a cabeça, soltar um grunhido anasalado para rapidamente me refugiar no caneco de chope. meus olhos acompanham o movimento das ancas da morena que caminha a passos justos em direção à nossa mesa, ela joga o quadril de lado sobre o banco de madeira, num verdadeiro exercício de resistência dos materiais, sua calça está tão justa que duvido que eu ou ela possamos resistir à tensão.
— o chuca vai dar uma festa, cês tão a fim?
a loira faz uma cara de esgar por ter sido interrompida em sua análise, lança um olhar de “você não tem jeito mesmo” na direção da morena, que ignora isso tão solenemente que me dá vontade de cantar o hino nacional.
o chuca deve ser o cara de jaqueta de couro e cavanhaque, só o cavanhaque. seria difícil negar qualquer coisa a ela, mas a idéia de ir a uma festa com pessoas desconhecidas não me parece uma aventura com velocidade controlada, seriam imprescindíveis mais alguns chopes para que eu, um velho leão covarde do mágico de oz, pudesse tomar uma decisão. faço um gesto ao garçom e me faço de desentendido, quando ambas começam a conversar em voz baixa numa linguagem complementada por sinais de mão, caretas. prudentemente levanto-me, vou ao banheiro.
não tendo nada melhor pra fazer, começo a ler as inscrições das paredes: “chupo pau de 18 a 35, pago vinte reais, dar o cu pago oitenta (escrito por extenso)”; “camboriu temporada (um úmero de telefone ilegível)”, “nesse lugar solitário/onde a vaidade acaba/todo covarde faz força/todo valente se caga”, “como sua mulher me liga” (outro número de telefone ilegível).
quando abro a torneira alguém me abraça por trás, o rebu-preto enluva meu pau, é a morena, não tenho tempo de perguntar o que ela quer, nem de lembrá-la que o bar exige recato, ela me beija vorazmente, sinto um gosto misto de cerveja, cigarro, apenas suportável porque uma boca jovem, rosada, seria capaz de disfarçar uma explosão atômica. pego-a pelos quadris, aperto o mais forte que posso, sinto o calor se desprendendo em ondas de seu púbis, ponho a mão por baixo de sua camiseta colada de suor, vou direto aos peitos, encaixo a mão ao redor de um deles, seguro seu mamilo de amora, desço a outra mão e aperto-lhe a bunda, depois enfio a ponta dos dedos pela fresta do cós até chegar à violácea umidade de seu sexo, minha língua passeia por seu pescoço até a nuca, sinto o hibridismo da casa de família e do bar. tento levá-la para dentro do banheiro, mas ela se desvencilha, apenas com a energia necessária para intensificar o significado de suas palavras não pronunciadas, porém bem articuladas num movimento dos lábios:
— aqui não, depois.
ela me toma pela mão, me leva até a mesa, para minha surpresa o cavanhaque está sentado ao lado da loura.
— esse é o chuca, esse é o ... como é mesmo o seu nome?
digo meu nome, o cavanhaque me estende a mão mole. nunca confiei em pessoas com esse tipo de aperto.
constato que barba desapareceu.
— eu guardei ele pra ti, depois te dou.
digo que tudo bem, me sento, com a curiosidade de ver aonde isso tudo vai terminar.