sexta-feira, abril 13, 2007

sete

meu segundo encontro com marta foi na biblioteca pública. eu costumava ir até lá para observar as pessoas. apanhava grandes tomos, preferencialmente de belas encadernações. sentava e folheava durante toda à tarde. graças a uma técnica duramente desenvolvida a árduas hemorróidas, eu conseguia manter um olho nas páginas enquanto o outro vagava por entre as estantes. aprendi a calcular o tempo através dos livros, e mais, aprendi a descobrir quanto tempo qualquer pessoa levava para ler um livro e, tendo isso por fundamento, encontrei uma maneira de definir desde traços de caráter até signos. alguém, ao saber desse meu inusitado talento, sugeriu que eu me dedicasse ao mundo acadêmico, recusei modestamente, apontando os inconvenientes de tal empreitada, eu fui, sou e sempre serei um banguela, gosto de sentir o sabor do mundo com as gengivas, mesmo que elas sangrem de vez em quando. nada de dentaduras! imagine eu, uma pessoa sem imaginação. foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. uma voz com o timbre autoritário de uma pedagoga construtivista perguntou se o tomo que eu tinha à minha frente não era o escrotarium barbosorium, de um certo ninguém, sibarita maldito pela igreja no século xiii, que para escapar ao jugo de seus perseguidores se enforcou pelo próprio pé, ressuscitando nove meses depois do útero de uma virgem do culto de ísis, tendo a seguir fugido dentro da barriga de um crocodilo do nilo que confundira seu membro com a tromba de um elefante, finalmente desembarcando nos trópicos sob os auspícios milagrosos de uma antiquíssima sociedade secreta, da qual se tornou o líder e – dizem – graças a seus segredos, está vivo até hoje. confesso que fiquei impressionado. justamente eu, uma pessoa sem imaginação. era preciso tomar uma decisão.
busquei um signo digno daquele contexto. mas, já era tarde. de marta só o rastro, os cabelos negros ondulando cúmplices. marta carpia o trecho em direção à saída. deixei meu olho à deriva e ganhei a capoeira atrás de marta, tentando lhe agarrar o encalço. foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. na rua alguém esperava marta à porta de um táxi aberta. mal trocaram os cúmplices olhares e as portas bateram – dessa vez não ouvi nada – frenéticas como as asas de uma pomba acuada num canto mijado. rapidamente o táxi virou um peido, deixando só o odor da partida. sim, eu tinha o urubu da dúvida fazendo sombra sobre meu ombro sob o caixilho da porta. havia alguma coisa ali. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. mas, resolvi tomar uma decisão. empacotar a vácuo.

oito

tudo o que me lembro era de uma dose atrás da outra descendo pela minha garganta, então o estômago pesando com a sensação de um guarda-chuva aberto. até aonde iria minha sorte nessa busca do esquecimento de marta? seria a carraspana o único modo de sustentar a lembrança. na fúria absoluta de cada instante, o gosto adocicado da cachaça me inundava, e o martelo me surrando os tímpanos, a cabeça – no fundo, bem no fundo era um zunzum cada vez mais ensurdecedor. e o martelo batendo na garganta e me estourando os ouvidos. não, não era um mero martelo, era alguém batendo em algum lugar.

nove

senti que minha vida dependia de manter os olhos abertos, abri um, depois o outro, percebi um forte cheiro de vômito, ao lado da cama uma mancha plástica de onde vinha um cheiro esquisito, quase sintético. sobre a cama: eu, deitado com um dos sapatos ainda atado ao tornozelo, uma perna da calça ainda vestida, e alguém martelando ininterruptamente. a porta do quarto prestes a desabar. as paredes giravam. eu girava.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

A versão feminina do segundo encontro de tua Marta - um raio - sovaquinho e almíscar, está disponível em meu blog capitanias.blogspot.com - Desculpe a minha ousadia, mas já li e reli, todas as tuas postagens me encantei com teu jeito fervoroso e apaixonado como escreves, assim me atrevi e peguei carona na tua imaginativa inspiração de poeta! Um fraternal abraço,

Simplesmente eu,

Eliana.

quarta-feira, abril 18, 2007  

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