quarta-feira, julho 04, 2007

A lua atrás do muro
ATO I
Cena 1

(Palco escuro. Voz clara de homem em off)

Hoje é o dia em que tudo dói, meu sonho e meus sóis estão lá fora, mas dentro de mim o deserto escuro chora sobre um abismo no qual não pode haver águas. O que fora feito de mim, eu nem pensava, fantasma, estigmas ou qualquer coisa que o valha de nada seriam se na explicação dos fatos não houvesse a palavra, a palavra que não fui eu quem te deu, foi uma loucura num gesto casual de censura, uma demonstração tácita de poder ou o tempo destinou-te doutra geração num atavismo distante que poderia me poupar a dor de dizer teu nome e sem explicação me esvair em sangue.

(Palco ainda escuro. Barulho de alguém tentando enfiar uma chave numa fechadura.)

De mim, eu nem pensava que começaria, nem pensava que te conheceria, a vida andava muito bem sem ti e muito melhor ainda sem esta lembrança que avança descabelada e negra, apenas a lembrança, sem a presença. Quisera me lembrar como tudo começou, para não começar, quisera ter conhecido teus pais, para te afogar assim que nasceste, o único jeito de arrancar esta dor, este pressentimento de que vais chegar a qualquer momento.

(Palco permanece escuro. Um telefone começa a tocar. Percebe-se que a chave é movida com mais afinco e velocidade: é uma chave desesperada. O telefone deve tocar por cinco vezes e depois cessar. O movimento da chave pára, como se a pessoa que a segura estivesse à espera ou ouvindo, então o movimento recomeça lento, pensado e preciso.)

De tudo que me dei pergunto o que restou, e o que encontro é a cena de um poema batido de Drummond, se eu me chamasse Carlos, talvez uma solução, não, a solução seria se tu fosses outra, mãe, freira menos puta. Puta, não serviria, pois dos teus nomes é o que eu mais amo e em ti prefiro.

O telefone volta a tocar, a chave volta a se debater freneticamente na fechadura, depois do quarto toque, escancara-se a porta (um quadrilátero iluminado no lado direito do palco – que permanece às escuras) donde salta uma sombra e avança furiosa na escuridão, ouvem-se sons de móveis sendo derrubados, o telefone pára de tocar, enfim, pausa de alguns segundos – deve haver dúvida se ele foi atendido ou se a pessoa do outro lado desistiu.

Lentamente ouve-se o som do telefone sendo solto pelo personagem. Ele caminha até a porta (o quadrilátero iluminado), retira a chave do lado de fora da porta e a fecha. Um segundo de pausa e ele acende a luz. O palco se ilumina.

Uma cama arrumada de quarto de hotel, uma mesa, uma cadeira caída, um abajur sobre um criado mudo, ao lado da cama vê-se outra porta, fechada (banheiro). Lentamente o personagem caminha e vai levantando os objetos caídos. Entra no banheiro deixando a porta aberta (não se vê ele lá dentro) ouve-se o som de uma torneira se abrindo e de alguém lavando o rosto, por fim enxuga-se numa toalha e sai. Caminha até a frente do palco e diz com um sorriso sarcástico, encarando o público:
— Ela vem!
Corte em blecaute.