sábado, dezembro 19, 2009

mel mais doce que o sangue (em progresso)

a pêra do príncipe

1
Caminho para o céu além no limite do sonho – seja qual for a natureza, estou além de toda e qualquer manifestação de sentido, equivalentemente à saturação do pensamento. Perverto a margem. Sempre pergunto pela única resposta verdadeiramente possível, contudo.

2
Não me desespero e estou aqui, julgo com mil olhos, enquanto você se vai – tenho verdadeira paixão pela simultaneidade. Vejo sua pequena corrida, estreitando os passos, depois o salto e o pairar instantâneo do seu corpo, a seguir o corte preciso na água; espero que sobrenade, aflito. Então, surge a sua cabeça – a água penteia os seus cabelos; você se vira e sorri. A água que escorre sobre seus olhos contrasta em tantas lágrimas que o seu sorriso desponta um sol no meio da minha cara e me ofusca todos os sentimentos, menos o querer. Nunca farei você sofrer. Com três braçadas você chega à borda da piscina – que pra você é um mar – apoia as mãos e suspende o corpo para, num impulso sobrenatural, se constituir inteira. Você caminha até mim, arrumando o sutiã do biquíni do qual um de seus seios escapuliu, vejo seu mamilo róseo, você olha pra mim e sabe que eu estou olhando, e continua sorrindo; mas não toca na parte de baixo, levemente deslocada e que deixa perceber a curva do seu delta. Sinto uma vontade louca de passear os dedos pela sua barriga. Você se abaixa e me beija, apertando os cabelos com as duas mãos, me molha. E, como se não fosse a sua intenção, me diz:
— Desculpa. Vou entrar, você vai ficar aqui?
Definitivamente, este momento não requereria nenhuma palavra, mas esqueço que você não é inefável, e sempre encontra a palavra para todos os momentos, mesmo os errados, mesmo a palavra errada – só que a transcendência do seu ser torna tudo ao seu redor imperceptível. Meneio a cabeça, com a mão no seu quadril.
— Vou fumar mais um cigarro e terminar a cerveja.
Constato a surpresa nos seus olhos às minhas palavras – parece que é a primeira vez que você escuta a minha voz.
— Tá bom, mas não demora, daqui à pouco as pessoas vão começar a chegar.
Você me beija o rosto e escapa por entre os meus dedos. Apanho um cigarro, e faço o movimento de acendê-lo, o mais lento possível, trago e solto a fumaça à luz do sol que já começa a se esconder detrás da serra, não penso nesse momento, saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

3
A casa de Marlene Uiramembi fica no meio da Serra do Mar, brota dentre a mata nativa; o projeto arquitetônico fora semeado, tudo se integra organicamente, a casa concebe-se a si própria. A rusticidade dos móveis harmoniza-se perfeitamente com a delicadeza dos utensílios: teares, quadros, lustres, livros e pequenos objetos escolhidos à dedo. Quatro andares misteriosamente diferentes e iguais, multiplicam-se os espaços sucessivos em tempos simultâneos, um desafio a priori.
À noite as pessoas se misturam pelos cômodos, camas com um toque oriental das quais se desperta numa atmosfera mesclada de café e óleo de linhaça. Pela manhã, pode-se tomar uma xícara no mezanino observando os inúmeros lagartos que se movem pelo quintal. Depois disso, vai-se até a piscina e abrem-se os trabalhos com uma cerveja bem gelada ou um copo de vinho – Marlene não permite que alguém beba antes do café da manhã.
Tudo isso propicia um etos à criatividade, aproximam-se egos e assuntos, num tempero exótico e, por vezes, picante.

4
Depois de tomar um banho e mudar de roupa, não espero Íris – que resolvera tirar um cochilo para se recompor; desço a escada à procura de Barba, ele me encontra no meio do caminho e me estende uma cerveja:
— Pô mermão, vamo lá que a moçada já tá chegando, Marlene ganhou uma cachaça de Minax que é do caralho, vamox lá dar um tapa.
Percebo que ele já o fez.
Acompanho Barba até o patamar inferior que se abre para uma sala de estar ao ar livre. Ele me serve uma dose. Bebo e observo algumas pessoas conversando animadamente, cada qual com um copo na mão, dando goles entre frases de efeito e sorrisos de dentição perfeita.
Barba me toma pelo braço e vai me apresentando a elas. Sorrio o melhor que posso. Barba me diz suas graças acrescidas dos apelidos profissionais:
— Fulano de tal, arquiteto.
— Fulana de tal, exposa de beltrano publicitário, e atrix.
— Ciclano, empresário.
Barba me apresenta como Guilherme Flecha, “um dos maiores poetas da atualidade”; a seguir guina para à esquerda todo prosa com uma dona de cabelos negros escorridos, intelectualmente andrógina.
Procuro um cigarro.
— Górgias me disse que o senhor escreve, já está ao lado de Flaubert nas bibliotecas?
Respondo que publiquei aqui e ali um ou outro poema e alguns textos de crítica, mas que estava trabalhando numa pequena novela.
— Crítica? Excelente. O senhor há de convir que a poesia atualmente não é lá grande coisa, pardon a franqueza, mas praticamente todo mundo escreve seus versinhos e, graças às facilidades de publicação, entulham os sebos com títulos existenciais de pouco ou nenhum valor. Além do mais, os grandes temas já não são tão acessíveis, dada a indigência intelectual em que nos encontramos, o Zeitgeist se tornou realmente um fantasma. Mas, aliás, me fale um pouco de suas abordagens teóricas, que tipo de crítica o senhor imagina ser coerente de ser praticada, atualmente?
Pergunta capciosa, vem de um braço estendido com uma chama numa das pontas, na outra, um sujeito de camisa pólo e bermuda de sarja, ambos cinzas e extremamente justos, principalmente considerando o porte de quem as veste, tudo acompanhado de um sorriso que lembra um hamister.
— Ah, desculpe, sou Benedito Schemihil.
Aperto sua mão, novamente, enquanto penso numa resposta digna, mas com a nítida noção de que qualquer delas será contrariada. Isso me deixa com duas opções: o árduo caminho da discussão, ou o simples menear que não diz nem uma coisa, nem outra. Escolho o caminho da esquerda.
Desfio um rápido rosário sobre oxímoros, carnavalização, ironia socrática e afins, entremesclados com jogos de palavras pré-pagos, num uso sistemático e inadequado de um vocabulário constituído exclusivamente para esse fim.
O senhor cinza guarda o isqueiro no bolso da calça e me apresenta sua mulher:
— Conhece Bas Bleau, minha esposa?
Curioso nome, mas não confesso, obviamente. Aperto a mão da gentil dama e dou-lhe três beijinhos – como é hábito entre pessoas bem educadas. Em contraste com o senhor Schemihil, a senhora Bas Bleau é extravagantemente magra. Ela se junta a nós na conversa, quer dizer, como ventríloqua, pois quem fala é seu “esposo”.
— Bas Bleau acaba de publicar uma pequena novela, evidentemente que apenas in loco ao lado de Blake, mas digna de nota, intitula-se Taturanas não são narguilês.
Sinto que cairei para trás. Enquanto isso, a senhora Bas Bleau sorri monalisicamente e ergue as sobrancelhas, dando a impressão de cantar mentalmente uma canção de Caetano Veloso.
— Desculpe, senhor Flecha, esqueci sua profissão.
Professor.
— Ah, então somos colegas. Em qual instituição o senhor leciona?
Atualmente em nenhuma.
— Que pena, diria que é literal e literariamente um desperdício. Mas, enfim, o mercado anda mesmo inflacionado com tantos profissionais saindo da universidade como pão quente; retomando nosso assunto, diria o mesmo a respeito de muitos autores, também. O mercado editorial, lamentavelmente, gira ao redor do lucro e não do talento, isso de um dos lados, evidentemente, pois, como eu ia dizendo, qualquer jovem com um punhado de caracteres pode se dizer escritor ou poeta e, tendo o capital necessário, pode pleitear uma publicação; do outro lado temos o fato de uma obra de, se me permite aqui à petit bouche, subliteratura, ser publicada simplesmente pelo fato de ser um sucesso nos Estados Unidos, então se a traduz e lança, em detrimento dos autores nacionais, capazes de um fôlego muito mais intenso e, no entanto, em nada reconhecidos. Em breve decretaremos, se alguém já não o fez e estamos a ladrar a fantasmas, o fim da literatura.
Meneei a cabeça e coloquei outro cigarro na boca, comecei a simpatizar com o senhor cinza. Ele meteu a mão no bolso e, antes que eu percebesse, já me acendia o cigarro. Retomou o fôlego e continuou:
— Se ao menos houvesse uma crítica literária competente ao invés de uma súcia de resenhistas perfunctórios e lineares, hoje em dia não há ninguém da envergadura de um Cândido, de um Schuartz, de um Campos, de um Bosi ou de seu (o senhor nasceu aqui?) conterrâneo Martins – são resenhistas que simplesmente resumem as histórias sem nenhuma análise, e muito menos capazes de sínteses, contudo fazem teses universitárias. Há três ou quatro décadas, essa subliteratura que é feita, hoje, não sobreviveria. Claro que reconheço o esforço das publicações específicas ou de grande circulação, a questão é que elas simplesmente fazem um trabalho de divulgação, no máximo dando munição aos intelectuais de orelha. Academicamente temos trabalhos dispensáveis que muito bem fariam se fossem vendidos como papel velho ou, ainda melhor, poupassem as árvores puramente não sendo escritos. Vivemos num tempo de preguiça, na esperança de que este Zeitgeist do menor esforço se realize por pura inércia e condescendência. Possivelmente fruto da apologia do mais fraco, apregoada pelo trabalho bem feito do cristianismo nesses últimos dois mil anos.
O senhor cinza parece falar por escrito e, enquanto fala, seus olhos pairam numa região obscura acima de minha cabeça, sua senhora Bas Bleau corrobora suas palavras entre um e outro gole. Depois de uma pausa dramática, ele volta à carga.
— Não estou dizendo com isso que temos ainda espaço para grandes obras, Raduan Nassar tem uma obra de poucas palavras e, no entanto, imortal, ao lado de Nabokov. Atualmente, não é possível levantar uma catedral gótica, o culto literário é algo muito mais modesto, entretanto a densidade pode ser realmente suprassumida, o autor ideal seria aquele capaz de desvelar abismos, ainda que com a largura de um passo.
Entretido com a conversa, não percebi que a festa de Reveillon começara oficialmente, muitos rostos desconhecidos. Barba nos interrompe e me convida a tomar mais um trago da mineira de Marlene. Peço licença ao senhor cinza.
— À vontade, espero voltar a vê-lo.
5
Enquanto bebo a mineira, Barba luta com o aparelho de som.
— Que merda! Ô Guilherme dá uma olhada nexta merda aqui?!
Aperto dois botões e as caixas acústicas cospem Sympathy for the devil, a plenos pulmões. Barba sai sacolejando ao encontro de Marlene, que carrega um copo de vinho; os dois dançam num ritmo peculiar, com total desprezo pelo andamento da música. Vou atrás de mais uma dose e percebo, enfim, Íris batendo um papo animado numa roda de cavalheiros uniformizados de bermudas e camisas pólo brancas. Diante disso, tomo duas doses.

6
Íris veste o vestido azul, pela ausência de marcas na tessitura, percebo que está sem calcinha, sutiã ela não precisa, seus seios possuem a gramatura e compleição exatas das conchas de minhas mãos. Me aproximo da roda e ela me apresenta. Cumprimento com um aperto de mão – todos os três correspondem frouxamente – são dois arquitetos e um editor. Este último devora Íris com os olhos, tem um copo de uísque na mão esquerda, a direita, no bolso da bermuda de sarja, movimenta o tempo todo um molho de chaves. Íris fala de seu interesse em publicar. O editor parece falar de seu interesse em “publicá-la”.
Deixo a conversa pairar ao redor dos meus ouvidos e fico fazendo claque ao lado de Íris, meus olhos passeiam pelo ambiente. As pessoas chegam, entram e saem, talvez a maior concentração de gente interessante dos últimos tempos, entretanto, não sei se conseguiria conviver com elas além do eventual. Elas são ubíquas: festas, livros, músicas, enfim: todo o mundo, e eu abstruso. Sempre me perguntei como é que as pessoas fazem para ganhar dinheiro – e essa gente ganha – só que nenhuma delas começou do zero, já havia uma condição ideal de temperatura e pressão para seu germinar, elas não fazem idéia do que é ter que constituir a própria atmosfera. Minha misantropia começa a se intensificar, de repente toda aquela gente começa a me entediar. Preciso de um pouco de ar. Passo a mão pelas costas de Íris e sussurro em seu ouvido, ela responde, bem perto da minha boca:
— Já vamos.
Não me surpreendo, Íris é capaz de considerações extremamente racionais, sempre optando pelo necessário em quaisquer circunstâncias. Neste momento, ficar conversando com o editor é muito mais lucrativo para ela do que estar comigo. Se eu fosse menos burro também enxergaria isso. Mas, sou uma criatura passional, contraditoriamente à suposta intelectualidade que me apregôo.
Certa feita, num de nossos aniversários, Íris ganhou uma viagem ao nordeste, eu, evidentemente, não poderia ir junto, entretanto ela foi, e eu passei dez dias infernais, regado a Pirassununga 51, entre périplos pelas bocas mais pesadas da rodoviária velha. Planejei uma vingança, prometi a mim a mesmo a ruptura irreparável, mas, quando ela voltou, me comportei como se nada houvesse acontecido. Era a natureza de Íris, é a natureza das mulheres.
Deixo Íris no seu processo de conquista e vou amarrar meu bode em outro lugar. Viro mais uma dose da mineira – que já está a um terço do fim – e apanho uma cerveja. Procuro um lugar mais calmo, sento-me no chão e respiro fundo. Sinto-me um embuste, sobretudo por me perguntar, ainda uma vez, se ela é a mulher da minha vida.

7
As palavras do senhor cinza me tocaram fundo, fico pensando que ainda não fui capaz de realizar alguma coisa de realmente significante, o que não é de todo mal, porque não cheguei a publicar algo de que me arrependeria. A questão é que apesar de todas as leituras, eu não consigo chegar a algo original e que fosse realmente necessário aos outros, além de mim mesmo. Quem sabe isso se deva ao fato de minha vida ser cotidiana em demasia, as pessoas me encontram e perguntam:— E aí, o que tem feito de novo? A minha resposta é sempre a mesma, não consigo fazer nada de novo, se ao menos acontecesse alguma coisa extraordinária, mas é sempre o mesmo. Quando quis começar a escrever, parte disso se deveu à minha falta de talento para outras coisas, como a música ou o desenho, sempre fui um diletante e minhas limitações foram justificadas pelas palavras de Henry Miller de que a literatura é algo que depende de experiência de vida, não se pode ser uma grande escritor aos dezoito anos – não levo em conta Rimbaud ou Chatterton –, mas de que espécie de vida ele está falando? Eu bem que gostaria de ter morado na Villa Bourgeuse, bebendo barris de vinho nacional e discutindo artes plásticas entre uma e outra trepada com uma mecenas herdeira num quartinho miserável, ou conhecer uma agente editorial lindíssima e refinada que implorasse pelos meus originais, enquanto eu, blasé, trabalharia num subemprego.


8
Ouço a música de longe, misturada com o gremelô das pessoas. Um cheiro forte de almíscar se insinua, a princípio imagino que vem do cigarro, depois das plantas ao redor, mas não consigo identificar a procedência.
— Não é educado se esconder durante uma festa.
Mal percebo quando ela se senta ao meu lado, olho e ela simplesmente está ali. Na pouca luz, distingo seus cabelos longos, ondulados e negros, sua camisa de seda entreaberta e que deixa perceber a renda do sutiã, sua saia revolucionária, suas botas vermelho-escuras de salto alto, mas o que mais me impressiona é o cheiro, uma mistura de almíscar e suor feminino.
— O que é que você está bebendo aí?
Estendo-lhe a lata de cerveja, vazia. Ela me oferece seu copo com algo vermelho. Tomo um gole do que parece ser vodca e bitter , amargo, mas saboroso. Instintivamente apanho um cigarro.
— Deixa que eu acendo.
Ela pega o cigarro de minha boca e acende, dá uma longa tragada e me passa de volta. Envolvidos pela fumaça começamos a conversar, sobre nada exatamente, embora também não tudo, apenas o prazer de ouvir as vozes reciprocamente.

9
Não sei quanto tempo isso durou, sei que Barba me tirou do transe:
— Vamox lá mermão, a fexta vai ser lá perto do rio.
Eu já havia me esquecido disso, apenas o esquenta seria na casa de Marlene, a festa propriamente dita seria numa construção ao lado de um dos inúmeros rios que cortam a região. Levanto e quando vou me dirigir à minha companheira ela se antecipa e num salto já desce o caminho de volta. Deixo Barba falando sozinho e vou atrás dela. Ainda tenho tempo de vê-la se misturando com as pessoas, quando Íris segura meu braço.
— Amor, onde é que você tava, bati um papo super legal com Filintto, acho que ele vai me publicar.
Não ouço o que ela diz, embora procure, sinto apenas o cheiro do almíscar, ele está impregnado no meu nariz e na minha cabeça. Íris me sacode.
— Você está bem? Está com uma cara esquisita. Você não devia ter bebido tanto.
É sempre assim, seja lá a maneira que eu esteja, mas desde que não se coadune com a vontade de Íris, eu devo estar bebendo demais.
Desconverso e vamos todos nos encaminhando para a festa.

10
Barba coloca as lagartixas para correr. Funga firme e forte num canudo de peixe-boi. Me estende. Reluto por um segundo, sempre fico um tanto pirado com esse tipo de coisa. Mas, não há muito que dizer. Repito o gesto, sinto a agulha bem no fundo da nuca. A golfada de espuma vem forte. Barba me estende o copo, engulo a espuma, a vodca, o bitter e mastigo o gelo. Guimarães estava certo, viver é muito perigoso.

11
Quando dou por mim, estou dançando, uma fera de asas soltas. Íris está alta, cada vez mais. Vejo-a conversando com Marlene. Elas se aproximam e beijam-se, Marlene empurra algo por entre os dentes e a língua de Íris, em breve Alice será convidada ao chá da meia noite, entretanto creio que a Cinderela vai acabar virando abóbora.
Barba me cata, novamente:
— Bicho, tenho que te moxtrar umax gatax!
Encaminhamo-nos ao bar da festa, dou uma olhada. Ao redor apenas o silêncio, os animais devem estar perplexos com todos esses humanos e seu comportamento. Barba cumpre a praxe e me apresenta. Nem mesmo eu sabia que tinha tantos aditamentos ao meu ser.
Por desencargo de consciência, procuro Íris. Ela está num transe hipnótico. Ignoro e penso que a vida deve ser assim mesmo.
Nos atracamos no papo. São atrizes – daquele tipo de mulher que dorme de dia. Barba é mais desenvolto, eu, por minha vez, sou apenas um encosto. Me esqueço e me lembro.
— Tu tens aí?
Hum, Porto Alegre?
— Claro gata, maix vamo ali.
Barba encarapita a loira. Eu tento renegar a raça. Mas é inútil, em menos de uma semifusa estou lambendo a língua dormente da outra, no ínterim, Barba adestra as lagartixas. Pressinto que será uma noite curta.
Fazemos numa escada, num misto de torpor e tormento. Mal tenho tempo, volto à carga. Estamos no Natal de um país nórdico, ao menos é o que me diz o nariz da outra.

12
No dia seguinte, desperto sem me lembrar ao certo do que aconteceu, minha cabeça está pesada e pregada ao corpo por um pino, bem atrás da nuca. Mal consigo abrir os olhos e vejo Íris ao meu lado, ela dorme o sono dos justos.
Levanto da melhor maneira que posso e vou procurar alguma coisa líquida. Na cozinha, encontro Barba sentado numa cadeira, diante de uma porção de copos e garrafas – os restos mortais da noite anterior. Digo um bom dia morno, do fundo da garganta, Barba está imerso em seus próprios pensamentos, numa espécie de transe.
Vou até a geladeira e apanho uma lata de cerveja, sento-me na porta e acendo um cigarro, tentando organizar as lembranças da noite anterior, até onde me lembro, ao menos. Aos poucos resolvo deixar essa idéia de lado, algumas coisas não merecem ser lembradas. Entretanto, uma memória é indissolúvel: a mulher que encontrei na piscina, quem será ela?

13
Voltamos de carona para Curitiba, acabei não reencontrando a mulher almiscarada do dia anterior, aliás, ninguém parecia sabe quem ela era, mas alguma coisa me dizia que eu ainda voltaria a vê-la. Com Íris aconchegada em meu ombro atravessamos a estrada, em pouco tempo posso ver as nuvens sobre a cidade, o mais estranho retorna depois de uma viagem.

1 Comments:

Blogger nina rizzi said...

will, quase um on the road, hm? eu vou ver se imprimo, agora, o texto que me enviou e depois te "falo", tá :)

beijo.

segunda-feira, dezembro 21, 2009  

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