sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Hino de Duran
Acordo com a campainha, tento ignorá-la, viro na cama e ponho o travesseiro sobre o ouvido. A campainha se transforma em batidas fortes e renitentes. Merda, quem será o obstinado? Levanto da cama e vou abrir a porta. Giro a chave e me deparo com dois rostos desconhecidos:
— Senhor Guilherme Flecha?
Desconfio que sou.
— Sou o policial Campos e este é o policial Carvalho, por gentileza, nos acompanhe.
O sujeito que fala comigo, o tal do Campos, tem estatura média, veste sapatos marrons, calça de sarja que combina com o cinto e uma camisa de cor clara, por cima de tudo um paletó leve; tudo parece ter sido comprado sob a rubrica de “traje completo” numa loja de departamentos, ele também usa um perfume masculino pouco discreto, possivelmente comprado na mesma loja. Consigo até imaginar a jovem demonstradora de cosméticos espirrando várias fragrâncias no braço de Campos, com todo o charme possível, e ele, com o ego inflado, se achando irresistível às mulheres, imagine se ainda por cima usasse um perfume. Minha mente vagou por alguns segundos, enquanto ele me encarava com um olhar que devia julgar perscrutador e dissimulado, enfim: seu olhar mais inteligente. Seu cabelo curto parece ter sido cortado recentemente, bem como a barba sem a mínima sombra.
O outro sujeito, o tal Carvalho, mais alto, calça jeans com a barra feita, sapato duro sem cadarço, camisa estampada com dois botões abertos, de onde sai um tufo de cabelos, e um paletó de couro carcomido na gola, ele parece ter um braço mais comprido do que o outro, com um olhar embaçado meio amarelado e a cara vincada, abriga uma barba de pelo menos dois dias; seu rosto não me é estranho.
Qual seria a razão que me levaria a acompanhá-los e para onde?
— Tudo será esclarecido no distrito, se o senhor quiser pode chamar seu advogado.
Não estou muito interessado em chamar meu advogado e muito menos em ir até o distrito, ainda mais a esta hora da manhã.
— Na verdade já passa das três da tarde e o senhor pode ir por bem ou por mal. São apenas alguns esclarecimentos, o senhor não precisa ter medo, a justiça serve para garantir o direito dos cidadãos, todo o resto são falácias dos marginais.
Posso tomar um banho e trocar de roupa?
— Claro, se o senhor permite, preferimos esperar do lado de dentro. Podemos entrar?
Dou passagem aos dois, fecho a porta. Querem beber alguma coisa? Quando Carvalho passa por mim, sinto um cheiro misto de perfume vagabundo de mulher, sabonete de motel, cigarro ordinário, suor e uísque paraguaio.
— Não obrigado, por favor não demore. Campos, parando à frente de minha estante de livros.
Quanto a Carvalho, acende um cigarro já sentado no sofá.
— O senhor mora sozinho?
Moro com minha mulher.
— Ela está em casa?
Não, deve ter ido trabalhar.
Deixo os dois na sala e vou para o banheiro.
Tomo um banho rápido e nem tenho tempo de me barbear, não faço a menor idéia de que dia é hoje ou de quanto tempo dormi, saio do banheiro enrolado na toalha e procuro vestir uma roupa discreta.
Quando chego na sala, Campos tem um volume nas mãos e Carvalho joga o cigarro pela janela com um piparote.
Podemos ir.
— Muito bem, diz Campos fechando o volume que tem nas mãos e que identifico como sendo um volume de contos de Poe. O senhor não gostaria de ligar para o seu advogado?
Não será necessário, considerando a garantia de que seriam apenas alguns esclarecimentos.
Ele coloca o volume sobre a mesa de centro, Carvalho segura o trinco da porta aberta com a chave do lado de fora. Campos me segura pelo braço, gentilmente.
— O senhor parece gostar muito de literatura senhor Flecha?
É uma paixão desde a infância, meu pai lia muito e eu acabei sendo influenciado.
— O senhor já escreveu alguma coisa senhor Flecha, ou melhor Flecha, posso chamá-lo assim?
Sim. Publiquei um volume de poemas já há algum tempo e ele podia me chamar de Flecha.
Passamos pela porta, vou trancá-la quando ouço a voz de Carvalho pela primeira vez:
— Deixa comigo.
Voz gutural parecendo sair dos confins de uma madrugada de bebedeira. A idéia não me agrada, mas Campos já me puxou pelo braço e começamos a descer a escada. Vejo Carvalho trancar a porta e pôr a chave no bolso.
Na rua entramos no carro parado em frente ao prédio. Campos se senta ao volante e Carvalho ao seu lado, vou para o banco traseiro.
Mal entramos na Mariano Torres, ouço pela segunda vez a voz de Carvalho:
— Tenho que comprar cigarro, me deixa na esquina que te encontro na delegacia.
Não tenho tempo de intervir e pedir minha chave, Campos pára e Carvalho atravessa a rua com o sinal aberto, desviando dos carros.
— Flecha, venha para o banco da frente.
Troco de lugar e arrancamos.
Campos liga o som do carro, começa a cantarolar improvisando um acompanhamento com leves batidas no volante e ao mesmo tempo prestando atenção ao trânsito, Chico Buarque canta o Hino de Duran.

Depois de algumas voltas, paramos na Pedro Ivo, o distrito fica na Barão do Rio Branco. Sinto fome, mas me reservo a não comer nada. O prédio não é lá muito discreto, uma construção antiga maquiada de modernidade com algumas placas de metal, vidros e divisórias. Campos me aponta uma cadeira.
— Dá um tempinho aí que o doutor Domingues já te atende. Quer um café?
Sim, e ele desaparece entre as divisórias.
Não há muita gente por aqui, os poucos policiais que resistem ao que parece ser o fim do expediente se vestem muito parecidos com Campos e Carvalho. O relógio da parede marca alguns minutos passados das quatro, tento imaginar o quanto dormi. Campos reaparece com um copo plástico fumegante.
— Tá aqui, espero que esteja bom de açúcar, fica à vontade que daqui a pouquinho eu volto.
Dou um gole no café e balanço a cabeça, indicando que o café está bom, contudo desconfio que isto não fará muito bem ao meu estômago vazio.

O ponteiro já deu uma volta e meia quando Campos volta, dá três batidas leves na porta e entra, logo atrás dele vem Carvalho e faz um ritual bem parecido, excetuando que as batidas não são tão sutis. Logo depois a porta se abre e Campos faz um sinal para que eu entre.
O escritório é praticamente um cubículo, atrás de uma mesa funcional está sentado um sujeito moreno de cabelo curto, queixo escondido, nariz grande, maçãs do rosto salientes e um olhar frio que destoa do sorriso gentil que tenta desenhar com os lábios desproporcionais, seu rosto parece ter sido construído numa brincadeira infantil e me lembra um pouco o homem-batata. Ele me estende a mão enorme, me surpreendo com o alcance de seu braço, seus membros são estranhamente desproporcionais ao tronco.
— Senhor Flecha? Como vai, sente-se, por gentileza. Sou o delegado Domingues.
O tom de voz é extremamente artificial, tenho a impressão de que todos esses sujeitos devem ter passado pelo mesmo curso de tratamento pessoal, nas palavras, nos gestos, no sorriso e até no figurino. Lembro de ter ouvido falar de um projeto assim, ocorrido há alguns anos, uma tentativa de humanizar mais a polícia e mudar a imagem que a população tinha dela, a questão é que no fim das contas a polícia se automatizou e se tornou ainda menos humana.
Campos e Carvalho sentam-se em cadeiras atrás de mim, um outro sujeito senta-se atrás de um computador numa mesa bem mais simples que a do delegado.
— Moura, não vamos precisar de você, nossa conversa é informal, ele diz isso e olha pra mim esboçando o mesmo sorriso de antes, que é aliás o mesmo sorriso de Campos.
O sujeito se despede e sai, fechando a porta.
— Senhor Flecha, não quero tomar o seu tempo e nem o meu, então vou direto ao assunto. O senhor conhece o senhor Górgias Barba?
Sim, conheço. Verdade.
— Que tipo de relação o senhor nutre com ele?
Costumamos trabalhar juntos. Verdade.
— E o senhor o conhece há quanto tempo?
Desde os tempos da faculdade, o que dá alguns punhados de anos. Verdade.
— O senhor tem idéia do paradeiro dele?
Ele me ligou no domingo pela manhã, falando a respeito de um trabalho e marcando uma reunião para segunda-feira, mas, indo até seu escritório, não o encontrei. Verdade.
— Qual é a natureza da atividade do senhor Barba?
Ele possui uma editora. Verdade.
— Isso dá dinheiro?
É uma questão de ter os contatos certos. Verdade parcial.
— Lobby?
Meu silêncio é dúbio. Nem verdade e nem mentira.
— E o senhor faz o que, exatamente?
Faço de tudo um pouco, desde revisão até a redação de alguns textos. Mentira.
— Copydesk?
Me limito a balançar a cabeça da esquerda para a direita algumas vezes. Mentira.
— O senhor saberia dizer no que ele andava trabalhando ultimamente?
Ouvi falar, mas não estava a par de todas os pormenores. Mentira.
— O senhor Barba mencionou algo sobre telefonemas que estivesse recebendo? Telefonemas com ameaças ou algo parecido?
Não disse nada. Verdade.
— O senhor conhece a senhora Marlene Uiramembi?
Já ouvi falar, ela faz parte do meio artístico, se não me engano. Mentira
— O senhor sabe se o senhor Barba mantinha alguma espécie de relacionamento com essa senhora?
Nunca soube que eles pudessem ter alguma espécie de relação, além da profissional. O último livro dela saiu pela editora de Barba. Mentira.
Percebo um olhar furtivo do delegado por cima do meu ombro, possivelmente para Campos, Carvalho se mexe na cadeira.
— Bem, senhor Flecha, como o senhor deve ter percebido o senhor Barba está desaparecido há dois dias e, como ele deu queixa de que estava recebendo ameaças, há a possibilidade de que algo tenha acontecido. Como o senhor era próximo dele, gostaríamos que nos mantivesse informado sobre qualquer notícia que venha a receber. De qualquer maneira nós manteremos contato. Conversamos com a família dele no Rio de Janeiro, mas por lá ele não apareceu. Enfim, contamos com a sua colaboração, Campos acompanhe o senhor Flecha.
Faço meus cálculos temporais mentalmente, olho o calendário na parede e descubro que é quarta-feira e não terça como eu imaginava, isso significa que dormi um dia inteiro, parece que desta vez o Anafranil funcionou.
— Mais uma coisa, senhor Flecha, o senhor é casado com a senhora Íris Veríssimo, não?
Casado não é a expressão ideal, nós moramos juntos há algum tempo.
— Ela trabalha para o senhor Barba?
Não formalmente, vez por outra, Íris é farmacêutica, mas tem alguma experiência em marketing e fez alguns desses trabalhos para Barba.
Campos me acompanha até a saída.

Eu já estou atravessando a Marechal Deodoro quando me lembro que minha chave está com Carvalho, merda, tenho que voltar.

Não há ninguém na portaria, entro e vou direto à sala do delegado, a porta está entreaberta e eles conversam lá dentro, agora mais descontraídos, distingo a voz encachaçada de Carvalho.
— Esse cara é um manso, o outro tava comendo a mulher dele na maior e ele ainda trabalhava pro cara.
— Tá bom, mas daí até o crime passional é um abismo.
— Vamos com calma, fiquem de olho no cara, mas na encolha, acho que ele é cuzão demais pra fazer qualquer coisa desse tipo.
Bato devagar na porta, os três têm um sobressalto.
Desculpe, minha chave ficou com o policial Carvalho.
— Faz tempo que você está aí? Carvalho me entregando as chaves.
Acabei de chegar, não encontrei ninguém na portaria e fui entrando. Ele balança a cabeça e fecha a porta enquanto me afasto, rapidamente.
Na rua, respiro fundo, a fome dá sinais de vida. Vou até um bar conhecido para tomar uma cerveja e comer alguma coisa, mas principalmente para colocar minhas idéias em dia.
sei que te vi e no
momento em mim
a carne destrinçava

eu dizia do que sei
ou do que não sei
sei que não esperava

e entre mentir e ser
prefiro te dizer
o que me confortava

(senti que não sentes)

passas reta e lenta
e porque não te sentas
a mim não resta nada

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

juízo sintético a priori

não sei ao certo como vim parar na mesa delas, só sei que a loira de cabelo curto tem um cigarro aceso, queimado já pela metade num cinzeiro à sua frente, ela está com barba aberto e absorta lê um poema em voz alta com toda a entonação e dramaticidade de ex-atriz, o que dá às palavras de barba um verniz simbolista que ele sempre procurou evitar em seus poemas, penso com meus botões que tenho alguma razão nas críticas a barba, mas ele diz que eu sou um representante da academia, que não passa de um museu, por conseguinte, eu não passo de um limpador de estátuas com meu espanador “epixtemológicu”.
procuro o garçom para pedir mais um chope, dou uma olhada na outra, morena, que também tem o cabelo curto. reparo que curiosamente as duas têm o mesmo amalgama rebu-preto nos dedos, a morena está absorta na leitura da loira, não sei se necessariamente pelas palavras de barba.
o garçom chega com meu chope, bem a tempo de ouvir o verso final do poema de barba, ao qual a loira dá toda a tensão na penúltima palavra encerrando com um gesto lento, o queixo no peito, os olhos fechados. a morena aplaude:
— lindo, lindo!
o garçom me olha, retribuo o olhar numa pura cumplicidade masculina.
a loira abandona barba, bebe um gole de cerveja – ao contrário de mim ambas bebem cerveja. a morena aproveita o intervalo para ir ao banheiro, vendo-a de costas faço eco às suas palavras. a loira prende um cigarro na ponta dos lábios, o qual me antecipo a acender, ela dá uma longa tragada, prende a fumaça por mais tempo que o usual, depois deixa a fumaça escapar lentamente por seus lábios entreabertos, bate a cinza, aponta com os dois dedos que seguram o cigarro para barba:
— esse cara é foda.
observo seus olhos, sei que esse comentário foi um mero exercício retórico, ela vai continuar, respiro, dou um gole. a loira retoma a frase anterior, começa a construir seu argumento. enquanto isso a morena sai do banheiro, vai na direção de outra mesa, acocora-se de costas para mim, enquanto conversa entre risadinhas e em voz baixa com um cabeludo de jaqueta de couro e cavanhaque, só o cavanhaque. chego à conclusão de que seria muito difícil vencer uma disputa argumentativa contra ela.
— não sei se tu concordas comigo.
a loira chama minha atenção.
— a palavra poética não é necessariamente portadora da idéia no sentido restrito que a doxa dá a ela, a palavra poética vai além, ela parte na direção de um infinito, mas que pode sê-lo somente porque justamente é uma instância de conhecimento infinito, daí a transendência da visão de mundo que se abre, fazer poemas não é como fazer sapatos, entende? há toda uma peculiar ontologia.
limito-me a balançar a cabeça, soltar um grunhido anasalado para rapidamente me refugiar no caneco de chope. meus olhos acompanham o movimento das ancas da morena que caminha a passos justos em direção à nossa mesa, ela joga o quadril de lado sobre o banco de madeira, num verdadeiro exercício de resistência dos materiais, sua calça está tão justa que duvido que eu ou ela possamos resistir à tensão.
— o chuca vai dar uma festa, cês tão a fim?
a loira faz uma cara de esgar por ter sido interrompida em sua análise, lança um olhar de “você não tem jeito mesmo” na direção da morena, que ignora isso tão solenemente que me dá vontade de cantar o hino nacional.
o chuca deve ser o cara de jaqueta de couro e cavanhaque, só o cavanhaque. seria difícil negar qualquer coisa a ela, mas a idéia de ir a uma festa com pessoas desconhecidas não me parece uma aventura com velocidade controlada, seriam imprescindíveis mais alguns chopes para que eu, um velho leão covarde do mágico de oz, pudesse tomar uma decisão. faço um gesto ao garçom e me faço de desentendido, quando ambas começam a conversar em voz baixa numa linguagem complementada por sinais de mão, caretas. prudentemente levanto-me, vou ao banheiro.
não tendo nada melhor pra fazer, começo a ler as inscrições das paredes: “chupo pau de 18 a 35, pago vinte reais, dar o cu pago oitenta (escrito por extenso)”; “camboriu temporada (um úmero de telefone ilegível)”, “nesse lugar solitário/onde a vaidade acaba/todo covarde faz força/todo valente se caga”, “como sua mulher me liga” (outro número de telefone ilegível).
quando abro a torneira alguém me abraça por trás, o rebu-preto enluva meu pau, é a morena, não tenho tempo de perguntar o que ela quer, nem de lembrá-la que o bar exige recato, ela me beija vorazmente, sinto um gosto misto de cerveja, cigarro, apenas suportável porque uma boca jovem, rosada, seria capaz de disfarçar uma explosão atômica. pego-a pelos quadris, aperto o mais forte que posso, sinto o calor se desprendendo em ondas de seu púbis, ponho a mão por baixo de sua camiseta colada de suor, vou direto aos peitos, encaixo a mão ao redor de um deles, seguro seu mamilo de amora, desço a outra mão e aperto-lhe a bunda, depois enfio a ponta dos dedos pela fresta do cós até chegar à violácea umidade de seu sexo, minha língua passeia por seu pescoço até a nuca, sinto o hibridismo da casa de família e do bar. tento levá-la para dentro do banheiro, mas ela se desvencilha, apenas com a energia necessária para intensificar o significado de suas palavras não pronunciadas, porém bem articuladas num movimento dos lábios:
— aqui não, depois.
ela me toma pela mão, me leva até a mesa, para minha surpresa o cavanhaque está sentado ao lado da loura.
— esse é o chuca, esse é o ... como é mesmo o seu nome?
digo meu nome, o cavanhaque me estende a mão mole. nunca confiei em pessoas com esse tipo de aperto.
constato que barba desapareceu.
— eu guardei ele pra ti, depois te dou.
digo que tudo bem, me sento, com a curiosidade de ver aonde isso tudo vai terminar.