sexta-feira, março 30, 2007

antes mal acompanhado do que só

The most merciful thing in the world, I think, is the inability of the human mind to correlate all its contents।
H. P. Lovecraft


um

a primeira coisa em que pensei foi marta. marta e sua pele de cobra. marta e sua língua de cobra. marta e seu cheiro forte de sovaquinho e almíscar. marta e sua boca pintada de lábios suculentos, quente como uma boceta, molhada como uma boceta – marta tinha a boca como uma boceta e a boceta como uma boca. marta e seus pêlos eriçando sexo, prometendo orgulhosos os maiores deleites. marta, um chocolate de lascívia. marta que tinha as maiores qualidades: paixão, dedicação, lealdade e, principalmente, autonomia. marta e o élan das mulheres que cantam, tocam, pintam, escrevem ou simplesmente existem. marta, a pura liberdade – a simultaneidade de todos os tempos. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. a segunda coisa em que pensei foi no frio. frio. não aquele comum que todos tremem. não aquele do qual se possa escapar sob as cobertas ou entre quaisquer pernas. falo sobre o frio do deserto. o deserto que trago em mim desde o nascimento. criei meu cubo de gelo para me apartar dele. quem saberá de sua lâmina? a lâmina gelada fundida no deserto de dentro de mim. o deserto que marta se insinuou afanar com seus dedos de fada, a cada foda, como se colhesse uma verbena do mais fino trato e desse ao caldeirão de seu desassossego. marta कोब्रे.. marta cobra. sangue quente em meu deserto. mênstruo lunar na lâmina escura. mas, o frio. aprendi a cultivar o frio nas noites escuras. aprendi com os corvos na loucura dos bares. aprendi com o álcool que me pôs os cabelos brancos e a umidade esverdeada das paredes enrugadas. aprendi o frio cultivando o único lírio que se transplantou para longe. frio lírio. aprendi com o frio a fugir para o cubo de gelo, recém criado de mim, junto ao deserto em que eu sempre estive. mas isso não foi tudo. o frio e marta foram quase tudo.



dois

enquanto eu dormia, pernilongos criptografaram minha história a sangue nas paredes frias do cubo de gelo, pirâmide de pernilongos, aonde não se leva casacos, para poder sentir o vento frio endurecendo os mamilos, contraindo a barriga, enrugando o membro, cerrando e batendo os dentes em compassos banguelas e desgraçados, no ritmo lento dos passos – síncope de males. para ir até lá é necessário ter o coração despedaçado. marta odiava os pernilongos, esperava sádica que se aproximassem, armava aberta sua arapuca gotejante, me mantendo afastado com uma das mãos e zás! lhes descia a borduna e os devorava logo a seguir com a língua de cobra. sem alternativa eu esperava o momento oportuno e procurava um meio sutil de lhe cravar o ferrão e sugar até a última gota de mênstruo. eu me consumia na luz acesa de marta. porém, nunca fui capaz de elucidar a astúcia transcendental dos pernilongos. no escuro eu me garantia, mas assim que a luz acendia, eu era incapaz do instinto de sobrevivência e me entregava ao desejo. zás! julgo que talvez isso se deva à minha incapacidade de converter o óbvio em duvidoso, ou à minha falta de imaginação. marta nunca tolerou, penso, a presença dos pernilongos junto à sua ausência no cubo de gelo. devido a isso, o artifício de deixar que alguém esteja sem de fato estar. disso eu entendia bem. na verdade era minha maneira predileta de demonstrar minha necessidade de marta, cultivando coisas que ela detestava. o problema é que de vez em quando os pernilongos saíam deliberadamente do cubo de gelo, e eu ficava a sós com marta, e ela me fazia crer que era por sua causa. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim.


três

lembro de mais uma coisa. nem sei se deveria lembrar. talvez seja um mero artifício. de marta? dos pernilongos? de alguém? de ninguém? talvez tenha levantado da cama no escuro para me surpreender às bordunadas. zás? duvide sempre – o sobrenome de marta. digo isso porque nunca tive o hábito de duvidar. quando ouvia um disparate me limitava a balançar a cabeça num menear enigmático com um sorriso amarelo e condescendente (comigo mesmo? com alguém?), ou então deixava as palavras atravessarem minha cabeça pelos ouvidos. não estou certo se os anos de enxurradas de bobagens não levaram algumas coisas pertinentes em seu leito lamacento. quem sabe algo importante, ou pior: o mais importante! talvez daí minha falta de imaginação. meu outro truque era deslocar um dos olhos de alguém, o deixando vagar à procura de alguma coisa supostamente mais interessante. confesso que isso me dava um certo ar débil, o sorriso amarelo e o olho boiando pelo espaço. mas são as necessidades da vida.
os vinte e dois recantos da pele

meu coração te encontra engasga e crispa
o gosto cata e abrasa a minha alma cisca
botando à prova a palma o mapa escreve
a mão cobra e define o jogo em tuas riscas

trava a trégua a trova o beijo a língua
invisto o hino em que te alinhavo o signo
tanto faz ou fez o intróito estreita o preito
desde sempre o nosso amor afina o visgo

insisto no instinto avanço e recuo
meto o vício plo frontispício instruo
enrijecida a seta a meta e o escopo
enlouquecidamente enguiço e fluo

quinta-feira, março 08, 2007

incerto

I
retorno ao cubo de gelo
não sei bem se por destino
ou desespero cultivo no tapete os teus cabelos

nos lençóis o azedume amanhecemos nossos corpos
fazendo a alma perfeitamente indelével
teu hálito tua língua teus seios teus gestos

minhas mãos sem destino
num instante te matam e eu desperto sombrio
bêbado em meu desterro pêlos cobertos de medo
na tua lembrança arrepio

II
aqui o que me resta de todas as canções são estes sentidos
me sentem as noites escuras
estas minhas mãos te levaram embora
e agora o horizonte me enforca num descaminho
a tua presença me inunda e não te reconheço
dentro de mim e fora daqui tudo em volta é só o desejo

III
quisera fazer do amor o céu e o mar
a beleza dos teus olhos azuis
navegar esse teu ventre louro nu
onde guardas o nosso segredo

mas eu não nasci para esse fim
alimento em mim um desprezo
e não é bom me ver assim
deste jeito que eu nem sei

lágrimas dor desespero
à espera da mudança
enxovalhar as lembranças
é bem aí que eu emperro

IV
permaneço amargo vertical
sangra-me o vórtice
a maré me leva entre as árvores
rodeado de abutres
eles aguardam
eu aguardo
o próximo acorde donde verterá meu eu

V
nas pontas dos meus dedos está teu nome
em minas retinas tua sombra
e antes que a minha canção acabe
impeça-me a rima

VI
procuro ver-te
alcei vôo entre as árvores
já que nunca aprendi a caminhar
esta terra não é minha
mas me abrigará

VII
de onde vem o desejo de te derramar dos meus olhos
tu que me roubaste o segredo de querer
e continuar vivendo
por que fizeste dos meus olhos girassóis
estou sozinho aqui dentro
com a música noturna
mulher que meus olhos bebeu
e partiu sem me deixar a chave do dia
levando tudo o que era eu
sinuca de fígado

te calo espreito estreito no ensejo do azo
aguardo o tempo do silêncio palmo a palmo
quando entre formos a fumaça incêndio e fogo
queimando a lua em sangue no fim da alameda

meus olhos cadentes vaticinam em teu corpo
(enquanto do teu pescoço pendem estrelas)
nosso destino a sorte de pequenas mortes
(ainda que nada penda das tuas orelhas)

até lá constelações à parte e à esquerda
(nossas bocas sessam decifrando as sendas)
o verso não fazemos então eu escrevo
(intenções tecidas más sisal nos dedos)

segunda-feira, março 05, 2007

à pele de oxum

(com ivan justen)

do esteio nosso amor teceste
arames em pendor oscilaste
por mais ainda hipnotizaste
na trama a tua conclusão exangue

deságua a dor crescente lua
enquanto na tua companhia obscura
apraz jazer e ser não mais a insônia
corrompendo lentamente o sono

quando da tua boca não fui mais o dono
depois de depositar a gota atroz
o que fora eu fôramos nós a sós
de nunca mais tirar nem pôr

e assim ao fim e ao cabo
acabo cabal a bacanália chã
eu sou só dois poetas em conchavo
um soturno (william) e outro torturado (ivan)
a casa vermelha onde nasci

eu te encerraria num poema breve
mas este breve breve amor
seria indecifrável meu e o teu desejo

(eu sou maluco e tu me culpas)
procuro teu beijo de uma vez por todas
pelas ruas desoladamente abstruso

este deserto concreto me enterra até o pescoço
e me detesto a miragem afogada em saliva
(quando estou sem ti sou um intruso) pois
meus olhos ainda te procurarão por toda a vida