esta tarde vi llover
dou uma volta pelo passeio público e resolvo sentar e tomar alguma coisa, o garçom é prestativo, peço um chope com bastante colarinho (não há chope escuro) e acendo um cigarro. respiro fundo e começo a organizar as minhas idéias até então, tudo parece envolto numa teia de confusão, quanto mais eu recorto e colo, mais liado eu fico. a névoa tênue envolve meus pensamentos, enfim ela chega.
estende-me a mão, sem sorrir, eu sorrio por dentro, me transporto para um lugar além da vida, as borboletas se multiplicam em meu estômago. eu havia esquecido como ela é inacreditável.
— oi, como você está?
pergunta infeliz e impossível de responder, ao menos positivamente, eu sei como se dão os juízos sintéticos a priore ou por que é antes o ente e não antes o nada, mas “como estou?”, é uma resposta que não tenho. possivelmente devo estar mal, mas minha vaidade me faz estufar o peito e me vestir como se fosse o próprio iluminado, sou um enganador, ou segundo me disseram certa vez: sou um vigarista.
— tenho pouco tempo, vou sair e tenho que ir pra casa me arrumar.
curioso, o universo pode estar se desconfigurando e ela permanece a mesma. olho nos seus olhos, tento ter o mínimo de perspectiva e frieza, claramente ela não está bem, o vinco ao redor do rosto, a pele ressecada pelo cigarro e as olheiras fundas de quem bebe muito. ela acende um cigarro.
— você tem visto o barba?
a última vez que tive contato com ele foi por telefone, ele me disse algo a respeito de um trabalho qualquer.
— disso eu sei, eu estava com ele.
um lança-chamas se acende em meu estômago, as borboletas tentam escapar ensandecidas, seu sangue ácido me corrói.
— depois que nos deixamos eu tentei falar com ele, mas não o encontrei.
ela disse “nós” (assim mesmo, entre aspas), com a mesma entoação que na bíblia o verbo conhecer é transitivo indireto.
a polícia está procurando por ele, parece que ele desapareceu.
— eu também sei disso, eles vieram me perguntar sobre a relação que ele tinha com você, aí eu falei sobre as suas crises de ciúme infundadas e sua obsessão de estar sendo traído, eles pareceram um pouco impressionados.
deveria eu tirar o meu sapato e dar na cara dela uma ou duas vezes? não, talvez de quatro a cinco.
— depois disso, percebi que estou sendo seguida, mas desconfio que não é a polícia, vou dar um tempo na casa da lalu, se eu fosse você também sairia fora.
esse tipo de expressão ela costumava usar quando a conheci e ela era superficial, fútil e ignorante, mas disfarçava bem, graças às fotos do sebastião salgado e o mundo de sofia. fiquei espantado, tive a esperança de que isso me ajudasse a escapar das suas garras, mas de nada adiantava ela se comportar como uma imbecil, eu apenas ficava magoado e não com raiva, sentimento vital.
— vou ir com nicômaco, de carro, acho que antes vamos pra paranaguá e guaraqueçaba, pra ver a lorena.
mais uma vez as aspas, nas entrelinhas ela estava me dizendo que eu era um nada e que aquilo que eu considerava bom e belo – malditos valores helênicos – eram apenas aditamentos ao mundo real, e que ter um carro é mais importante do que ter os poemas completos de lorca. ainda por cima, ela fazia questão de me lembrar sempre que o tal nicômaco era grego, e a maneira como ela o dizia, fazia parecer que o próprio aristóteles o tivesse educado.
a conversa já estava me irritando. respirei fundo, acendi um cigarro, uma pergunta martelava em minha cabeça: como eu posso estar acorrentado a uma âncora? trinta e um hábitos detestáveis: nomear as pessoas com sílabas, ser pernóstica, tratar desconhecidos como se os conhecesse há séculos, maturidade falsificada, cultura sem lastro – só por ouvir dizer, tratar coletâneas de mp3 como discografia fundamental, usar palavrões como pontuação, ser ignorante, se refugiar emocionalmente nas outras pessoas, volubilidade, superficialidade, leviandade, caráter duvidoso e diluído, falta de personalidade, materialismo...
eu estava tentando enumerar os outros, quando ela me interrompeu.
— barba estava trabalhando numa coisa que nunca quis me dizer o que era e também nunca me deixou ver, mas tem alguma coisa a ver com a aquela velha, marlene uiramembi (um leve descontrole em sua voz), acho que era isso que ele tinha pra falar com você, pelo que pude saber, ele e ela estavam planejando alguma coisa, todo mundo sabe que você é amigo de barba, e podem querer saber se você sabe alguma coisa.
de repente ela se levanta e eu me ponho de pé.
— tchau, eu tenho que ir.
me dá um abraço, enfio o nariz no seu pescoço e descubro o que sintetiza todos os seus trinta e um defeitos: ela simplesmente não me ama mais.
— bom, era isso, se cuida tá, você está lindo.
digo que preciso devolver algumas coisas dela.
— é tudo seu.
por que eu sou incapaz dessa generosidade?
fico em pé vendo-a se afastar, ela me deixa tudo, mas vou todo com ela,. começa a chuva fina e persistente, frias lâminas que serão desde sempre e para sempre.
dou uma volta pelo passeio público e resolvo sentar e tomar alguma coisa, o garçom é prestativo, peço um chope com bastante colarinho (não há chope escuro) e acendo um cigarro. respiro fundo e começo a organizar as minhas idéias até então, tudo parece envolto numa teia de confusão, quanto mais eu recorto e colo, mais liado eu fico. a névoa tênue envolve meus pensamentos, enfim ela chega.
estende-me a mão, sem sorrir, eu sorrio por dentro, me transporto para um lugar além da vida, as borboletas se multiplicam em meu estômago. eu havia esquecido como ela é inacreditável.
— oi, como você está?
pergunta infeliz e impossível de responder, ao menos positivamente, eu sei como se dão os juízos sintéticos a priore ou por que é antes o ente e não antes o nada, mas “como estou?”, é uma resposta que não tenho. possivelmente devo estar mal, mas minha vaidade me faz estufar o peito e me vestir como se fosse o próprio iluminado, sou um enganador, ou segundo me disseram certa vez: sou um vigarista.
— tenho pouco tempo, vou sair e tenho que ir pra casa me arrumar.
curioso, o universo pode estar se desconfigurando e ela permanece a mesma. olho nos seus olhos, tento ter o mínimo de perspectiva e frieza, claramente ela não está bem, o vinco ao redor do rosto, a pele ressecada pelo cigarro e as olheiras fundas de quem bebe muito. ela acende um cigarro.
— você tem visto o barba?
a última vez que tive contato com ele foi por telefone, ele me disse algo a respeito de um trabalho qualquer.
— disso eu sei, eu estava com ele.
um lança-chamas se acende em meu estômago, as borboletas tentam escapar ensandecidas, seu sangue ácido me corrói.
— depois que nos deixamos eu tentei falar com ele, mas não o encontrei.
ela disse “nós” (assim mesmo, entre aspas), com a mesma entoação que na bíblia o verbo conhecer é transitivo indireto.
a polícia está procurando por ele, parece que ele desapareceu.
— eu também sei disso, eles vieram me perguntar sobre a relação que ele tinha com você, aí eu falei sobre as suas crises de ciúme infundadas e sua obsessão de estar sendo traído, eles pareceram um pouco impressionados.
deveria eu tirar o meu sapato e dar na cara dela uma ou duas vezes? não, talvez de quatro a cinco.
— depois disso, percebi que estou sendo seguida, mas desconfio que não é a polícia, vou dar um tempo na casa da lalu, se eu fosse você também sairia fora.
esse tipo de expressão ela costumava usar quando a conheci e ela era superficial, fútil e ignorante, mas disfarçava bem, graças às fotos do sebastião salgado e o mundo de sofia. fiquei espantado, tive a esperança de que isso me ajudasse a escapar das suas garras, mas de nada adiantava ela se comportar como uma imbecil, eu apenas ficava magoado e não com raiva, sentimento vital.
— vou ir com nicômaco, de carro, acho que antes vamos pra paranaguá e guaraqueçaba, pra ver a lorena.
mais uma vez as aspas, nas entrelinhas ela estava me dizendo que eu era um nada e que aquilo que eu considerava bom e belo – malditos valores helênicos – eram apenas aditamentos ao mundo real, e que ter um carro é mais importante do que ter os poemas completos de lorca. ainda por cima, ela fazia questão de me lembrar sempre que o tal nicômaco era grego, e a maneira como ela o dizia, fazia parecer que o próprio aristóteles o tivesse educado.
a conversa já estava me irritando. respirei fundo, acendi um cigarro, uma pergunta martelava em minha cabeça: como eu posso estar acorrentado a uma âncora? trinta e um hábitos detestáveis: nomear as pessoas com sílabas, ser pernóstica, tratar desconhecidos como se os conhecesse há séculos, maturidade falsificada, cultura sem lastro – só por ouvir dizer, tratar coletâneas de mp3 como discografia fundamental, usar palavrões como pontuação, ser ignorante, se refugiar emocionalmente nas outras pessoas, volubilidade, superficialidade, leviandade, caráter duvidoso e diluído, falta de personalidade, materialismo...
eu estava tentando enumerar os outros, quando ela me interrompeu.
— barba estava trabalhando numa coisa que nunca quis me dizer o que era e também nunca me deixou ver, mas tem alguma coisa a ver com a aquela velha, marlene uiramembi (um leve descontrole em sua voz), acho que era isso que ele tinha pra falar com você, pelo que pude saber, ele e ela estavam planejando alguma coisa, todo mundo sabe que você é amigo de barba, e podem querer saber se você sabe alguma coisa.
de repente ela se levanta e eu me ponho de pé.
— tchau, eu tenho que ir.
me dá um abraço, enfio o nariz no seu pescoço e descubro o que sintetiza todos os seus trinta e um defeitos: ela simplesmente não me ama mais.
— bom, era isso, se cuida tá, você está lindo.
digo que preciso devolver algumas coisas dela.
— é tudo seu.
por que eu sou incapaz dessa generosidade?
fico em pé vendo-a se afastar, ela me deixa tudo, mas vou todo com ela,. começa a chuva fina e persistente, frias lâminas que serão desde sempre e para sempre.