quarta-feira, novembro 29, 2006

esta tarde vi llover

dou uma volta pelo passeio público e resolvo sentar e tomar alguma coisa, o garçom é prestativo, peço um chope com bastante colarinho (não há chope escuro) e acendo um cigarro. respiro fundo e começo a organizar as minhas idéias até então, tudo parece envolto numa teia de confusão, quanto mais eu recorto e colo, mais liado eu fico. a névoa tênue envolve meus pensamentos, enfim ela chega.
estende-me a mão, sem sorrir, eu sorrio por dentro, me transporto para um lugar além da vida, as borboletas se multiplicam em meu estômago. eu havia esquecido como ela é inacreditável.
— oi, como você está?
pergunta infeliz e impossível de responder, ao menos positivamente, eu sei como se dão os juízos sintéticos a priore ou por que é antes o ente e não antes o nada, mas “como estou?”, é uma resposta que não tenho. possivelmente devo estar mal, mas minha vaidade me faz estufar o peito e me vestir como se fosse o próprio iluminado, sou um enganador, ou segundo me disseram certa vez: sou um vigarista.
— tenho pouco tempo, vou sair e tenho que ir pra casa me arrumar.
curioso, o universo pode estar se desconfigurando e ela permanece a mesma. olho nos seus olhos, tento ter o mínimo de perspectiva e frieza, claramente ela não está bem, o vinco ao redor do rosto, a pele ressecada pelo cigarro e as olheiras fundas de quem bebe muito. ela acende um cigarro.
— você tem visto o barba?
a última vez que tive contato com ele foi por telefone, ele me disse algo a respeito de um trabalho qualquer.
— disso eu sei, eu estava com ele.
um lança-chamas se acende em meu estômago, as borboletas tentam escapar ensandecidas, seu sangue ácido me corrói.
— depois que nos deixamos eu tentei falar com ele, mas não o encontrei.
ela disse “nós” (assim mesmo, entre aspas), com a mesma entoação que na bíblia o verbo conhecer é transitivo indireto.
a polícia está procurando por ele, parece que ele desapareceu.
— eu também sei disso, eles vieram me perguntar sobre a relação que ele tinha com você, aí eu falei sobre as suas crises de ciúme infundadas e sua obsessão de estar sendo traído, eles pareceram um pouco impressionados.
deveria eu tirar o meu sapato e dar na cara dela uma ou duas vezes? não, talvez de quatro a cinco.
— depois disso, percebi que estou sendo seguida, mas desconfio que não é a polícia, vou dar um tempo na casa da lalu, se eu fosse você também sairia fora.
esse tipo de expressão ela costumava usar quando a conheci e ela era superficial, fútil e ignorante, mas disfarçava bem, graças às fotos do sebastião salgado e o mundo de sofia. fiquei espantado, tive a esperança de que isso me ajudasse a escapar das suas garras, mas de nada adiantava ela se comportar como uma imbecil, eu apenas ficava magoado e não com raiva, sentimento vital.
— vou ir com nicômaco, de carro, acho que antes vamos pra paranaguá e guaraqueçaba, pra ver a lorena.
mais uma vez as aspas, nas entrelinhas ela estava me dizendo que eu era um nada e que aquilo que eu considerava bom e belo – malditos valores helênicos – eram apenas aditamentos ao mundo real, e que ter um carro é mais importante do que ter os poemas completos de lorca. ainda por cima, ela fazia questão de me lembrar sempre que o tal nicômaco era grego, e a maneira como ela o dizia, fazia parecer que o próprio aristóteles o tivesse educado.
a conversa já estava me irritando. respirei fundo, acendi um cigarro, uma pergunta martelava em minha cabeça: como eu posso estar acorrentado a uma âncora? trinta e um hábitos detestáveis: nomear as pessoas com sílabas, ser pernóstica, tratar desconhecidos como se os conhecesse há séculos, maturidade falsificada, cultura sem lastro – só por ouvir dizer, tratar coletâneas de mp3 como discografia fundamental, usar palavrões como pontuação, ser ignorante, se refugiar emocionalmente nas outras pessoas, volubilidade, superficialidade, leviandade, caráter duvidoso e diluído, falta de personalidade, materialismo...
eu estava tentando enumerar os outros, quando ela me interrompeu.
— barba estava trabalhando numa coisa que nunca quis me dizer o que era e também nunca me deixou ver, mas tem alguma coisa a ver com a aquela velha, marlene uiramembi (um leve descontrole em sua voz), acho que era isso que ele tinha pra falar com você, pelo que pude saber, ele e ela estavam planejando alguma coisa, todo mundo sabe que você é amigo de barba, e podem querer saber se você sabe alguma coisa.
de repente ela se levanta e eu me ponho de pé.
— tchau, eu tenho que ir.
me dá um abraço, enfio o nariz no seu pescoço e descubro o que sintetiza todos os seus trinta e um defeitos: ela simplesmente não me ama mais.
— bom, era isso, se cuida tá, você está lindo.
digo que preciso devolver algumas coisas dela.
— é tudo seu.
por que eu sou incapaz dessa generosidade?
fico em pé vendo-a se afastar, ela me deixa tudo, mas vou todo com ela,. começa a chuva fina e persistente, frias lâminas que serão desde sempre e para sempre.

quinta-feira, novembro 16, 2006

calabar

será preciso que eu te precipite
e assista calmamente o rugir da maré violenta
que te engolfará até a medula

quando a noite vier escura
quando vier a procura
o tua covardia será o fato consumado
de tudo o que podias

e eu enquanto mal na minha casa de cismas
primaverilmente igual ao que fui
tu dali em diante não terás verões
zyryab

teu coração pressente uma tristeza
quem sabe a tua beleza não se esqueça
da maneira certa de um amor que
aqueça ou aqueça um outro corpo quem

quer que sejas te abrir à presa
penas para que vos queira o sol
de olhos bem fechados para que valhas
o nó das pernas e na tua certeza

te abstenhas de te vestir e venha
carregar o peso daquilo que desdenhas
cáustica causa salgada destas águas
adormecidas azuis em minhas pálpebras
um canto (diálogo)

me arranje um canto
uma ruga uma rusga qualquer
pra deitar minha voz
rebuscada de tanto revés

me arranje um
pra fumar minhas metas lá fora
pois tudo o que eu sinto
sequer é melhor do que outrora

me arranje
preciso depois o quanto antes
de uma língua de um pulsar
que cante quente e cante mais

me
cante por todos os cantos e no entanto
até eu não fazer mais sentido prescrito
nas esquinas de todos os riscos
o sentido de querer lhe abrigo
ao homem que voltou do palácio da sabedoria.

quarenta e oito graus de liberdade

para jorge barbosa filho


os meus poemas têm asas de abutres
eles se nutrem de meus pesadelos
nas noites em que a loucura me sucumbe
enquanto cavalgo segurando teus cabelos

não me adiantam palavras nem zelo
desde que sou o profeta das nuvens
só seduzindo a tua nudez em pêlo
sob a ausência de todas as luzes

somente assim eu desvelo o segredo
da minha morte vida em solitude
sigo a sombra pela sina da astúcia
vociferando os versos que me rugem
o logos e o acaso podem ser veneno ou antídoto, sobretudo quando acontece o enunciado venenoso ao qual somos permeáveis e vulneráveis, por puro acaso -- não há antídoto. resta apenas torcer que a palavra -- venenosa -- seja absorvida por um amigo e nunca passada à nossa rede sangüinea, a menos não enquanto não passar um bom tempo. há muita coisa que não é necessário dizer ou saber. e o melhor remédio contra a maldição -- veja-se a branca de neve -- é a beleza, mais especificamente a poesia. eu diria mais: uma tarde toda de poesia.

jaganathá

só porque lembrei do seu nome

quase te esqueço
quando me despeço
mas continuo preso
ao teu regresso

se invento um verso
nele o apreço do teu ventre
me perece entre os feixes do teu sexo

eu(não)não te quero
eu nada peço
e se ainda peco
é pelo teu avesso convexo


(parceria com ivan justen santana)
meu primeiro poema em liberdade -- e nem fui até o palácio da sabedoria.

escarlate

estrela da manhã

de que profundo anseio é este verso errante
venerado sob o céu de sangue
antes fosse esta a mulher eterna
andando entre a gente diversa

despida de todas as vestes
me comprometo ao sacrifício
de te querer meia e não

inteira me negas tuas metades
és toda beleza e banalidade
dentro deste amor eu descarrego
a fumaça agarrado ao teu desejo

quinta-feira, novembro 09, 2006

termidor

hoje em mim emperra a solidão
não do amor que tive e que não foi
mas do ser que fui e se desfez
desta vez quem sabe sei ser diferente

e diante da cara dessa gente
meu espírito não se fascine
antes a ira me inunde a sina
e suspeite pasma do embuste

assassino o quarto das núpcias
e da boca não quero nem cheiro
saliva com gosto de incenso
prefiro ao remédio o veneno