sexta-feira, abril 27, 2007

dezesseis

juro que tentei. na mesma mesa. loira e japonesa se enfrentavam na sinuca. curioso como minha vida parecia andar em círculos. dejavú ou djavan. merda, eu detestava quando as coisas me pareciam assim, imprevisíveis. o que aconteceria agora? alguém chegaria e me perguntaria:
- fulano de tal?
que diabos eu responderia? empreenderia fuga? e se eles fossem rápidos. o pior é que eles eram rápidos. e marta? ah, eu nunca deveria ter acreditado em marta. mas marta acreditava em mim. até que, a primeira coisa em que pensei foi marta. foi quando – um raio – sovaquinho e almíscar. tudo estava quieto demais, e eu era, afinal, um cara pálida.

dezessete

marta entrou como um raio em algum lugar. no exato instante em que meu olho boiante era encaçapado com uma potente tacada. perdi a concentração. marta parecia procurar alguém. parou diante do balcão e pediu uma meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma. disfarcei oblíquo ao lado de marta. o gajão serviu rapidamente. marta aproveitou para lhe falar sobre uma tradição familiar que a obrigava a tomar uma meia com amargo, uma não, na verdade duas, para fazer uma inteira. hum, de novo o urubu da dúvida fazendo sombra sobre meu ombro sob o caixilho da porta. o que iria acontecer agora?

dezoito

súbito, ouvi a voz de alguém atrás de mim, suas costas encostaram nas minhas, curioso, alguém parecia carregar um cachimbo no bolso traseiro. marta e alguém conversavam sob o tapete, tentei ler os lábios de marta através do espelho, mas ela parecia dizer o contrário do que realmente queria dizer. alguém segurou sua mão, marta puxou-a lentamente, quanto a mim estava divido entre marta e alguém e a loira e a japonesa. marta ameaçou sair. a loira cortou um sete no meio. alguém começou a vasculhar o bolso traseiro em busca do cachimbo. a japonesa matou a oito no canto. mais uma ficha e meu olho livre, preso ao decote de marta através do espelho. marta olhou o relógio. alguém sorriu como um coelho, batendo suas dentaduras triplas e babando cuspe entre as frinchas. a loira bebeu um gole do seu chá. a japonesa tirou do bolso uma carta de baralho. e eu, bem, eu era afiliado do partido comunista e bebia um black label vez por outra.

segunda-feira, abril 23, 2007

treze

foi quando – um raio – sovaquinho e almíscar.
- teinx fogo?
- hein?
- fogo, teinx fogo?
estendi-lhe minha caixa de fósforos.
apanhou e pôs no bolso sem acender o cigarro que pendia do canto da boca.
- essa cerveja tem dono?
tinha, mas não era eu. sem se importar desceu uma meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira, e um cristal cica com a cerveja. secou numa talagada, temperando com meu leite de colônia.
- falô rapá!
saiu saindo como se nada tivesse acontecido. sim, eu tinha o urubu da dúvida, novamente, fazendo sombra sobre meu ombro sob o caixilho da porta. mas ela se dissipou rapidamente. o consertador de elevadores que freqüentava os porões da quitanda gentilmente resolveu me tornar à vida. aí ressuscitei no terceiro golpe. saí catando cavacos. subitamente havia adquirido o hábito de beber cerveja. era tempo. girei nos calcanhares e úmido de leite de colônia ressentindo.

quatorze

a tarde havia caído, a noite já tentava o drible, a bola redonda se ameaçava num gol imaginário sob o arco-íris. minha cabeça girava. eu não pensava em marta já há algum tempo, mas sentia que ela estava por perto em algum lugar. claro! algum lugar. como eu não havia pensado nisso antes? o óbvio nem sempre é o melhor! o criminoso sempre volta ao local do crime. a aranha escuta pela perna. cabelo quando cai pela raiz não nasce mais. nesse caso algum lugar e, se tudo mais falhasse, lugar nenhum.

quinze

algum lugar estava cheio. fiquei espantado com tantos criminosos num lugar como aquele, que era algum lugar apenas. era preciso esperar que o tempo passasse por ali. bem, depois de tantas decisões uma a mais ou menos não faria diferença. para disfarçar o cheiro de leite de colônia e não levantar suspeitas, pedi meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira. o gajão atrás do balcão me olhou com um olho suspeito – vítreo como uma bola de gude daquelas pinceladas com tinta branca. contei-lhe uma história a respeito de uma certa tradição familiar que eu seguia e que me obrigava sempre a tomar uma meia com amargo, na verdade duas para fazer uma inteira. não sei se o convenci, ele foi peremptório: - não tem!
não insisti. sê prudente, já dizia iago para otelo.

quinta-feira, abril 19, 2007

mada

porque te vi passar austera e bela
lembrei de mim naquela tarde
a tarde em que eu não me tinha

e enquanto aqui e agora
demoro entre garrafas canas e me encharco
te vejo namorar a rua (austera e bela)

assim cruzando a noite em montaria
até o dia espero o momento de ir
embora já que não estás aqui ao lado

(espera)

porque te vi passar austera e bela

dez

a primeira coisa em que pensei foi marta. eu nunca deveria ter acreditado em marta. mas marta acreditava em mim. enfim tentei levantar. a cabeça pesando, meus olhos vagando aonde eu não lhes podia encontrar. até que alguém pôs a porta abaixo. saltei o melhor que pude, mas em vão, me estatelei de encontro ao assoalho. alguém entrou no quarto de supetão, seguido por dois desconhecidos fardados – a princípio desconfiei se tratarem de policiais. mas, em que espécie de trama eu estaria metido? vasculhei a memória atrás de alguma lembrança, mas qual? só me lembro das atitudes uma atrás da outra até que... havia alguma coisa, alguém presente na memória, mas indistinguível da sombra de marta, seu sovaquinho e almíscar. diabos. de alguma forma eu precisava sair daquela situação. mas como? pensei num plano ousado, mas daria certo? alguém escancarou a janela com um esgar de nojo, um dos fardados me atirou sobre a cama. alguém falou: - fulano de tal? que resposta seria correta? eu pretendia ignorar a situação, que sabia eu do que estava acontecendo? maldita marta. alguém se insinuou nas minhas defesas. minha cabeça girava mais e mais, tentei controlar a gosma que jorrou feito um vulcão de minhas entranhas, atingindo em cheio a camisa de alguém que não resistiu e também se entregou à golfada, no que foi acompanhado pelos dois fardados. era a minha chance! mancando o melhor que pude empreendi fuga, sabia que eles eram rápidos. passei zunindo pela porta e escapei escada abaixo. nunca a liberdade me soou tão bem como o vento nos ouvidos. eu precisava encontrar uma saída, e sabia que a resposta só poderia estar com marta. mas, onde estaria marta? eu precisava descobrir.

onze

a melhor maneira era tomar uma atitude e provar que a aranha escuta pela perna, que cabelo quando cai pela raiz não nasce mais. tranqüilo que nem uma vaca resolvi voltar ao local do crime e provar minha inocência. dei várias voltas na mesma quadra, cumprimentando pessoas diferentes, só para desmarcar quaisquer presenças alheias. marta podia ser esperta, mas eu era mais esperto ainda. a melhor maneira de se esconder é aparecendo. sim, agora eu estava raciocinando. a questão é que depois de passar várias vezes no mesmo lugar e cumprimentar pessoas diferentes, cheguei à conclusão de que estava andando em círculos, no fim já não havia pessoas diferentes. era preciso admitir: eu estava cansado, e acabei enganando a mim mesmo. o desespero secava minha garganta. até que tudo me pareceu claro como um enigma. a solução era o problema, eu devia é deixar que as pessoas diferentes passassem por mim, essa seria a camuflagem perfeita. eu ganharia tempo de sobra para tomar a decisão certa. mas esperava tomar algumas erradas, antes.

doze

seu zé tinha o disfarce perfeito. uma quitanda. parei e resolvi que ali era o lugar perfeito para arquitetar meu plano. entre um e outro leite de colônia tudo passaria a fazer sentido. vez por outra eu desgrudava o umbigo do balcão para ver se alguém estava por perto. nada e nem ninguém. eu nunca devia ter acreditado em marta. mas marta acreditava em mim.

sexta-feira, abril 13, 2007

sete

meu segundo encontro com marta foi na biblioteca pública. eu costumava ir até lá para observar as pessoas. apanhava grandes tomos, preferencialmente de belas encadernações. sentava e folheava durante toda à tarde. graças a uma técnica duramente desenvolvida a árduas hemorróidas, eu conseguia manter um olho nas páginas enquanto o outro vagava por entre as estantes. aprendi a calcular o tempo através dos livros, e mais, aprendi a descobrir quanto tempo qualquer pessoa levava para ler um livro e, tendo isso por fundamento, encontrei uma maneira de definir desde traços de caráter até signos. alguém, ao saber desse meu inusitado talento, sugeriu que eu me dedicasse ao mundo acadêmico, recusei modestamente, apontando os inconvenientes de tal empreitada, eu fui, sou e sempre serei um banguela, gosto de sentir o sabor do mundo com as gengivas, mesmo que elas sangrem de vez em quando. nada de dentaduras! imagine eu, uma pessoa sem imaginação. foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. uma voz com o timbre autoritário de uma pedagoga construtivista perguntou se o tomo que eu tinha à minha frente não era o escrotarium barbosorium, de um certo ninguém, sibarita maldito pela igreja no século xiii, que para escapar ao jugo de seus perseguidores se enforcou pelo próprio pé, ressuscitando nove meses depois do útero de uma virgem do culto de ísis, tendo a seguir fugido dentro da barriga de um crocodilo do nilo que confundira seu membro com a tromba de um elefante, finalmente desembarcando nos trópicos sob os auspícios milagrosos de uma antiquíssima sociedade secreta, da qual se tornou o líder e – dizem – graças a seus segredos, está vivo até hoje. confesso que fiquei impressionado. justamente eu, uma pessoa sem imaginação. era preciso tomar uma decisão.
busquei um signo digno daquele contexto. mas, já era tarde. de marta só o rastro, os cabelos negros ondulando cúmplices. marta carpia o trecho em direção à saída. deixei meu olho à deriva e ganhei a capoeira atrás de marta, tentando lhe agarrar o encalço. foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. na rua alguém esperava marta à porta de um táxi aberta. mal trocaram os cúmplices olhares e as portas bateram – dessa vez não ouvi nada – frenéticas como as asas de uma pomba acuada num canto mijado. rapidamente o táxi virou um peido, deixando só o odor da partida. sim, eu tinha o urubu da dúvida fazendo sombra sobre meu ombro sob o caixilho da porta. havia alguma coisa ali. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. mas, resolvi tomar uma decisão. empacotar a vácuo.

oito

tudo o que me lembro era de uma dose atrás da outra descendo pela minha garganta, então o estômago pesando com a sensação de um guarda-chuva aberto. até aonde iria minha sorte nessa busca do esquecimento de marta? seria a carraspana o único modo de sustentar a lembrança. na fúria absoluta de cada instante, o gosto adocicado da cachaça me inundava, e o martelo me surrando os tímpanos, a cabeça – no fundo, bem no fundo era um zunzum cada vez mais ensurdecedor. e o martelo batendo na garganta e me estourando os ouvidos. não, não era um mero martelo, era alguém batendo em algum lugar.

nove

senti que minha vida dependia de manter os olhos abertos, abri um, depois o outro, percebi um forte cheiro de vômito, ao lado da cama uma mancha plástica de onde vinha um cheiro esquisito, quase sintético. sobre a cama: eu, deitado com um dos sapatos ainda atado ao tornozelo, uma perna da calça ainda vestida, e alguém martelando ininterruptamente. a porta do quarto prestes a desabar. as paredes giravam. eu girava.

domingo, abril 08, 2007

quatro

eu estava assim assado, ouvindo a argumentação fiada na epistemologia deontológica da ontologia dos ornitorrincos, vinda de alguém cujas dentaduras triplas cintilavam a cada termo teutônico cultivado a áridos sacrifícios salivares, que cavavam as profundezas de velhos tomos de conhecimento esquecido. lembro claramente da maneira como alguém arrumava as dentaduras triplas depois de uma esdrúxula repleta de consoantes aspiradas glotais, cujo tilintar lembrava, pelo timbre, o compasso ternário batido de um dodecafonismo digno de tornar kitsch até a mais sóbria e formal das execuções. tentei por mais de uma vez, como um maestro acostumado a pizzicatos virtuosos, barrar o intento de alguém, mas a cada tentativa alguém erguia a mão num sinal breve para que eu esperasse somente um instante, enquanto alguém concluía sua explanação até a última gota de ambrosia. foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. a primeira coisa em que pensei foi marta. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. a luz amarelada das lâmpadas de quarenta e cinco velas lhe dava um apelo místico, sombreando o vão de seus peitos em contraste com a camisa de seda preta e as alças do sutiã vermelho. sua boca desenvolvia um movimento independente do resto do rosto e do corpo, magnífica coreografia, marta era duas, marta era vária – tudo ao mesmo tempo. tive um piriri quando marta articulou a liquidez viril de uma meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira. o botequim flutuou no proselitismo das palavras de marta. tentei fazer algo, a situação exigia uma atitude. procurei com todas as forças o signo adequado àquele contexto. meu olho jazia inerte num pacal insolúvel entre os peitos de uma loira e as ancas de uma japonesa, ambas perseguiam a bola oito como a uma paternidade. pior. diante de minha aparente confusão e desespero, alguém julgou estar sendo obscurantista e pouco pedagógico, decidindo, a seguir, recomeçar a palestra fiada na epistemologia deontológica da ontologia dos ornitorrincos. encheu a boca de saliva e depois sugou entre os vãos dos dentes a fim de lubrificar suas dentaduras triplas – como se as frinchas limpas pudessem melhorar sua dicção e, quem sabe, abrir as janelas do meu entendimento. nesse meio tempo – para meu desespero – banguelas e vastas dentaduras tentavam abalroar marta, que sorria e mandava pra dentro daquele corpo inesquecível barris de meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira. seriam os ornitorrincos marsupiais? foi aí que – um raio – sovaquinho e almíscar. a primeira coisa em que pensei foi marta. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim.

cinco

súbito, enquanto alguém buscava a etimologia de um termo esdrúxulo de raízes icsas, marta pisoteou como uma manada de elefantes seu raciocínio, esbofeteando uma conclusão cuja argumentação seria surpreendente mesmo para um doutor de dentaduras quádruplas. o queixo de alguém caiu, suas dentaduras brilharam de satisfação ao encontrar um par digno de se ombrear. deixou um olhar vítreo pairando diante de mim e saltou para o banco ao lado de marta. no mesmo instante senti uma dor aguda, a japonesa fugira do pacal e encaçapava meu olho de quebra à bola oito. a ira da dúvida ou a lívida rua? no alarde do impasse se fez tarde. entre uma melhor de três, marta e alguém deitaram o cabelo. quando dei por mim azulei na direção à rua a tempo de ver marta e alguém entrando num táxi. ouvi duas coisas nitidamente: a primeira foi um termo que aglutinava todas as concepções hermenêuticas possíveis a respeito da epistemologia deontológica da ontologia dos ornitorrincos; a segunda foi o endereço que marta dava ao taxista (mais tarde descobri se tratar de um lugar reservado e destinado às mais sutis discussões afeitas às finezas do paladar de marta, lugar onde ela soltava toda a versatilidade de sua língua de cobra). o táxi se afastou. a primeira coisa em que pensei foi marta. fui um idiota ao acreditar em marta. mas marta acreditava em mim. disparei pra dentro do botequim. sobre o balcão restava o martelo de marta. ainda era visível meia gota amarga de meia com amargo, na verdade duas, para fazer uma inteira. peguei o copo e arrepiei o tamanco. o português do botequim ainda gritou um pega ladrão carregado. mas eu correria mais que um canguru por aquele troféu. foi minha primeira vitória.

seis

somente no dia seguinte, ao acordar, foi que me lembrei de ter esquecido no botequim a pasta com meus inéditos e minha carteira de identidade. terei me tornado poeta? nunca mais voltei lá. nunca mais recuperei meus inéditos. nunca mais recuperei minha identidade. a vi certa vez na primeira página de um jornal popular. o que me obrigou a raspar o bigode e pintar o cabelo. mudei de nome. foi duro no início, mas depois de um tempo não doeu tanto. fui um idiota em acreditar em marta. mas marta acreditava em mim.